Cadernos de Memórias: Antecedentes da construção do CDHS

De que são feitas as conquistas institucionais? No ‘Memória Administrativa’ acreditamos que elas são feitas de sonhos, de ousadia, de oportunidades que se abrem no presente, unindo legados do passado com a imaginação do futuro. São feitas de negociações, de imprevistos, de afetos, de suor, por pessoas. Suas marcas ficam registradas em documentos, em monumentos, em mentes e em corações. Entendemos que dar visibilidade a essa trajetória tem o potencial de desnaturalizar conquistas e inspirar diferentes gerações institucionais a criarem continuamente, lançando-se aos desafios e apostas que se colocam a partir de seus próprios tempos, em atendimento às demandas da sociedade a quem instituições públicas devem servir.

Compartilhamos hoje o primeiro capítulo do “Cadernos de Memória Administrativa da Fiocruz”, publicação que pretende reunir textos, imagens, documentos e depoimentos que ajudem a compreender os diferentes elementos que sustentam uma conquista institucional. O tema desta publicação é a construção da edificação Centro de Documentação e História da Saúde, o CDHS. Convidamos você a navegar conosco nesse caminho possível para narrar a constituição de um espaço concebido para abrigar um precioso acervo sobre a história das ciências, da saúde e, claro, da própria Fiocruz, ator nacional e global dessa trajetória. O CDHS é hoje a sede da Casa de Oswaldo Cruz, mas essa conquista é de toda a Fiocruz e da sociedade brasileira, que passa a contar com uma edificação digna dos tesouros de nossa memória institucional e coletiva, refletidas em documentos que agora estão devidamente preservados, num ambiente convidativo a sua consulta!

Utilizaremos o blog do Memória Administrativa para publicar as versões preliminares dos capítulos dessa publicação, começando com o capítulo 1, “Antecedentes da Construção do CDHS”. E assim seguiremos por todos os capítulos previstos, compartilhando via blog as versões parciais dos textos que comporão a publicação final, prevista para ser lançada no início de 2025. Toda a documentação utilizada para compor essa publicação será também compartilhada em nossa Base Memória Administrativa.

Boa leitura!

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CAPÍTULO 1:
Antecedentes da Construção do Centro de Documentação e História da Saúde (CDHS)

1.1 – A casa anterior dos documentos e arquivos: a “expansão” do campus

O desejo para a construção de um centro que abrigasse os acervos de forma adequada é longínquo e acompanha a história da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) desde os tempos em que parte de seus departamentos ainda ocupava o antigo prédio, “do outro lado da Brasil”, em formato de “T de perna curta”, como diria o arquiteto que o projetou, Floroaldo Albano. O prédio, localizado na outrora chamada Expansão do campus, atual campus Maré, teve sua construção iniciada em 1964, sendo planejado para abrigar um hospital ou a sede para o Ministro da Saúde no Rio de Janeiro. A conjunção alternativa “ou”, na frase anterior, já revela uma falta de definição inicial quanto ao fim específico do projeto. Tal falta de definição fez com que Floroaldo Albano projetasse algo que pudesse ser adaptado para diversos usos e com possibilidade de expansão futura. Em depoimento, Albano relata que era necessário fazer algo que “pudesse crescer depois”, e que se inspirou na arquitetura do Ministério da Saúde, em Brasília.  

Prédio da Expansão, atual campus Maré. Fonte: DAD/COC

Além da necessidade de projetar algo que servisse para diversos usos, Albano relata ainda que precisou levar em consideração as especificidades do lugar em que o prédio seria construído. Em virtude da proximidade com a Avenida Brasil e do terreno pantanoso, o arquiteto afirma que três fatores externos foram considerados para a técnica de construção: “o gás metano do pântano, do canal Faria, o gás expelido pela refinaria de Manguinhos e o CO² dos carros e dos ônibus”. Além disso, ainda ressalta que o “índice de corrosão era enorme” e, por isso, as fachadas tiveram que ser protegidas. Tais dados revelam o contexto do prédio que viria a ser ocupado futuramente pelos acervos da Casa de Oswaldo Cruz, pelos seus funcionários, pesquisadores e estudantes. Se os desafios já estavam dados no ato da construção do edifício, certamente eles não terminariam quando fosse ocupado, sobretudo pela necessidade de “adaptação” de um prédio não pensado para a guarda e acondicionamento de acervos tão valiosos.

Os contrastes, no entanto, não se limitam ao aspecto arquitetônico. Enquanto o campus Manguinhos é densamente arborizado e movimentado, tanto por pessoas quanto por edificações, transmitindo uma sensação de vivacidade com a cor verde predominante, o campus Maré apresentava, até antes da pandemia, uma atmosfera menos densa. Não havia, por exemplo, atrativos que estimulassem a visita da comunidade, como ocorre no campus de Manguinhos a partir de seus parques, conjunto arquitetônico e museus. O prédio parecia se integrar paisagisticamente mais à Avenida Brasil do que ao próprio campus da Fiocruz.

Representação do prédio em formato de “T com perna curta”. Fonte: Autores, 2024.

A descrição desse cenário permite que visualizemos o contexto em que parte dos departamentos da COC, formalizados a partir de 1989, funcionariam até a construção do Centro de Documentação em História da Saúde (CDHS/COC): Amplos corredores, que mais lembravam um hospital, longe da profícua movimentação do campus Manguinhos; em salas adaptadas, ampliadas e diminuídas quando necessário; distante da própria Direção da Casa – nos primeiros tempos, os projetos e trabalhadores da COC atuavam em salas do Castelo Mourisco e no Prédio do Relógio, tendo este último sido ocupado pela Direção até construção do CDHS; em suma, um ambiente que pouco estimulava a integração, valor tão relevante para a Fiocruz e, sobretudo, para a COC. Constituída em 1985, a COC tinha por missão coordenar atividades de recuperação da memória e pesquisa histórica referentes à Fiocruz e à Saúde no país, estabelecendo uma política para preservação documental na instituição, planos para melhor aproveitamento e valorização do complexo arquitetônico do campus de Manguinhos, bem como atividades de animação cultural para a Fiocruz.

Antes da instalação do Arquivo no prédio da então “Expansão”, algumas análises de viabilidade foram feitas. Por tratar-se de uma adequação, os sistemas de incêndio, umidade e temperatura foram, evidentemente, adaptados no prédio que não havia sido construído para abrigar um arquivo. Nara Azevedo, pesquisadora do Departamento de Pesquisa da COC (Depes/COC) e diretora durante 8 anos da Casa, afirma que a “Expansão” não possuía um sistema de segurança contra incêndio. Os acervos, por serem compostos majoritariamente de documentos em papel, eram extremamente vulneráveis a problemas como incêndios e vazamentos de água. Embora muitos investimentos tenham sido realizados, estes ainda estavam aquém do que tais arquivos mereciam para garantir uma preservação adequada por conta da limitação imposta pela estrutura do prédio. A “expansão”, nas palavras de Floroaldo Albano, era um “prédio básico”. Como, portanto, abrigar um acervo tão precioso em um prédio “básico”? 

Sala do prédio da expansão com caixas contendo documentos para guarda. Fonte: DAD/COC

A adaptação, mais uma vez, se fez necessária quando o arquivo foi, de fato, instalado no prédio no ano de 1989. Nesse processo, a organização e gestão dos acervos tornaram-se tarefas imprescindíveis para garantir a preservação e guarda adequada dos documentos. Logo no começo dos trabalhos, uma vasta massa documental foi acumulada, formando verdadeiras montanhas de livros. Foi necessário, neste sentido, uma força-tarefa dedicada exclusivamente à gestão e organização desses materiais. O prédio, com suas características “adaptáveis” e “básicas”, ganhou mais um elemento em seu interior, reforçando ao máximo a ideia de seu projeto de servir para vários usos concomitantes: as “dunas” de livros trazidos se formaram e, enfim, nas salas se materializavam verdadeiros montes de livros, onde cada incursão era uma aventura em meio às montanhas de conhecimento acumulado ao longo dos anos anteriores à existência da COC. Fernando Antonio Pires-Alves e Cristina Fonseca, pesquisadores aposentados da COC, oferecem uma ideia do que foram as “dunas”:

“Então, quando nós criamos o departamento de arquivo e documentação e que previa uma biblioteca, uma das tarefas foi vir aqui e resolver essas dunas… É, a gente chamava de dunas… ‘Ó, segunda, terça e quarta de manhã: dunas!’. E aí vínhamos todos. Posso listar, assim: eu, Wanda, Verônica, Stella, Eduardo, Ricardinho, Ana Luce… Acho que todo mundo. Marli… Vínhamos aqui e vestíamos guarda pó… Compramos estantes, achamos estantes, botamos aí em vários lugares… E fomos tirando e limpando livro. E aí aparecem os exemplares da coleção Oswaldo Cruz, coleção Carlos Chagas… autografados! Exemplares raros, belíssimos, que para uma história da saúde pública… tem um clássico, que é o “Saneamento do Brasil”, do Belisário Pena, dedicado ao Carlos Chagas com a assinatura do próprio Belisário Pena(…) Mas se existe algum sentido na palavra de resgate da memória, esse aí foi um típico resgate, mesmo. Foi uma intervenção para sanear um equívoco, um descuido, uma coisa… impensável, né? Imaginar que a Fiocruz, àquela altura, estava tratando suas obras, suas coleções de livros dessa maneira… Impensável… Mas tudo isso são processos…” (Depoimento de Pires-Alves, 2015)
“Dunas” de livros no prédio da expansão. Fonte: DAD/COC
“Tinha muita coisa, muito livro antigo, num porão no Castelo. E essas coisas todas, quando a gente veio pra cá, em janeiro começou a mudança, a gente começou um processo de trazer essa documentação toda pra cá também (…) Porque o que que isso vai virar? Isso dá início a nossa biblioteca (…) Muita coisa que é obra rara que hoje já voltou pro Castelo, pra Biblioteca de Obras Raras, entendeu. Mas isso tudo durante anos e anos e anos estava lá abandonado, ninguém nem sabia da existência disso nem estava muito preocupado com aquilo. (…) Então você tinha um monte de coisas que a gente ficou insegura, então eu e Lisabel a gente teve que chamar um pessoal, uma equipe de engenheiros da COOPE, pra poder fazer todo um estudo do prédio, avaliar se o prédio tinha condições de receber, né, estantes, pesos, livros, entendeu. Aí depois que isso tudo foi… se deu ok pra isso tudo, com laudo e com tudo, que deve estar arquivado em algum lugar, aí a gente trouxe as famosas dunas pra cá. E aí começamos esse trabalho, que eu tô falando que foi muito legal. Mas aí a gente tinha que fazer tudo. A gente fez tudo. A gente limpou chão, limpou janela, montou estante, pra poder começar a organizar os livros, entendeu. Então isso durou meses. Aí a gente tomava banho aqui. Outro dia estava lembrando disso, quer dizer, você tinha que botar roupão, máscara, luvas, porque era um monte de livro guardado há duzentos anos. Aí no final do dia nos banheiros tinha chuveiro, e a gente tomava banho. [risos]” (Depoimento de Fonseca, 2015)

Com a instalação do acervo e dos departamentos de Pesquisa e de Arquivo e Documentação da COC no prédio da expansão, os trabalhos se iniciaram e começaram a ganhar forma. As organizações foram feitas, os documentos foram devidamente classificados e acondicionados, e a expansão foi testemunha de novas conquistas celebradas ao longo do tempo, como a criação da Biblioteca de História de Ciências e da Saúde, a criação de uma Pós-Graduacão em História das Ciências e da Saúde, a formalização de um “Núcleo de Informação em História das Ciências e da Saúde” e a abertura de uma sala de consulta para a pesquisa e atendimento ao público em 1999.  A Casa de Oswaldo Cruz se materializava em meio ao trabalho árduo e à valorização da memória e se tornava, portanto, um santuário de memórias e sonhos onde o tempo, a partir de seus registros documentais, iconográficos e sonoros, repousa em cada canto; um refúgio de afetos e conquistas, onde as histórias de vidas, passadas e presentes, se entrelaçam em grande fotograma de experiências humanas. Diz Hans Castorp, protagonista de “A montanha mágica”, que o tempo progride e presentifica transformações.

Trabalho no prédio da Expansão. Fonte: DAD/COC

Com o passar do tempo, a vontade e o desejo de possuir um espaço pensado especificamente para a guarda e a preservação dos acervos foi se consolidando e se constituindo como um desafio. Pensar em um prédio, um “centro de documentação”, com uma estrutura adequada seria completamente diferente de ocupar um prédio “adaptado” para esse fim. O Centro de Documentação e História da Saúde – CDHS, ainda enquanto um projeto, nasce com o objetivo precípuo de abrigar de forma mais adequada os acervos. O prédio da expansão, durante os anos em que a Casa esteve lá, havia chegado no limite em relação a capacidade de manter o acervo histórico. 

Nara Azevedo, durante o período em que esteve na Direção da COC – 2005 a 2013 –, revela que a construção do CDHS foi o projeto mais desafiante que enfrentou, e que foi necessário conquistar os “corações e as mentes” das pessoas. Não por acaso, a menção ao “coração” e a “mente” revela categorias importantes para a consolidação do projeto: é preciso racionalidade para operacionalizar a construção de um prédio em um campus que já estava saturado do ponto de vista de novas construções; mas, mais do que isso, é preciso afeto e amor pelo trabalho, pela instituição e pela preservação da história e da memória da saúde pública brasileira:

“Eu tive a felicidade de contar com pessoas…. não somente as que estavam me cercando, mas também outras pessoas que acreditaram. Eles acreditaram que isso era possível. Sozinha eu não faria nada e eu sabia disso. Alguém que se coloca numa posição como essa, você já sabe que não vai conseguir fazer nada sozinho. Os projetos podem nascer de uma pessoa, mas na verdade eles se tornarão realidade se conseguirem conquistar os corações e as mentes das outras pessoas” (Depoimento de Azevedo, 2021)

A construção do novo centro, evidentemente, enfrentou diversos desafios. Os diretores Nara Azevedo e Paulo Roberto Elian, em depoimento, afirmam que precisaram realizar um trabalho essencial de convencimento das pessoas e esclarecer que não haveria uma “outra” Casa de Oswaldo Cruz separada do Centro de Documentação. Outra preocupação, na época, era de que a Direção deixaria o Prédio do Relógio – edifício histórico que integra o Núcleo arquitetônico de Manguinhos. Este local, onde a Direção atuou por muitos anos, foi fundamental para consolidar a identidade visual e simbólica da Casa. “No imaginário das pessoas”, diz Paulo, “o prédio do relógio era sinônimo da Casa de Oswaldo Cruz.” No trabalho de convencimento, foi preciso reafirmar que o prédio do relógio não deixaria de ser da Casa, mas que serviria a outros fins. 

Em 2012, é lançada a pedra fundamental – primeiro bloco de pedra que é colocado em cima da fundação de uma construção – do Centro de Documentação e História da Saúde. Em 2018, o prédio é inaugurado, marcando a concretização de um sonho e uma nova etapa da Casa. O CDHS é, portanto, uma manifestação da crença compartilhada, do amor, do afeto, dos “corações e mentes” que acreditaram na possibilidade de sua existência. Ganha a Casa de Oswaldo Cruz, a Fiocruz, a sociedade e a Ciência Brasileira.

Arquivo no prédio da Expansão, atual campus Maré. Fonte: DAD/COC

Gostaram da leitura? Na próxima publicação parcial da “Cadernos”, veremos mais sobre os antecedentes da construção do CDHS: de onde partiram os recursos para a construção, premiação recebida, surpresas no caminho com os achados arqueológicos… Não se esqueçam de colaborar conosco via formulário de colaborações. Até a próxima!


Referências

ALBANO, Floroaldo. Depoimento [2000]. Rio de Janeiro, COC/Fiocruz, 2000. Disponível no DAD/COC

AZEVEDO, Nara. Depoimento [2021]. Rio de Janeiro, COC/Fiocruz, 2021. Disponível no DAD/COC

FONSECA, Maria Cristina Oliveira. Depoimento [2015]. Entrevistadora: Érica de Castro Loureiro. Rio de Janeiro, 2015. Disponível no Memória Administrativa da Fiocruz.

OLIVEIRA, Benedito Tadeu (coord.), COSTA, Renato da Gama-Rosa; PESSOA, Alexandre José de Sousa. Um lugar para a ciência: a formação do campus da Manguinhos. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2003.

PIRES-ALVES, Fernando. Depoimento [2015]. Entrevistadora: Érica de Castro Loureiro. Rio de Janeiro, 2015. Disponível no Memória Administrativa da Fiocruz.

PORTAL Memória Administrativa da Fiocruz. Disponível em: https://memoria.coc.fiocruz.br/index.php/

SANTO, Paulo Roberto Elian dos. Depoimento [2021]. Rio de Janeiro, COC/Fiocruz, 2021. Disponível no DAD/COC